sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Objetividade e subjetividade... racionalidade ou emoção? Eis o dilema...

A insustentável objetividade do Ser. O cotidiano e as sutilezas entre pesquisador e nativo

Anna Maria Alves Linhares

As “Ficções Parciais” e toda a “Ironia” que faz a discussão sempre mais instigante… a
história do indispensável Professor Nilton


Por que instigante? Nada mais interessante do que contar histórias e estórias… muito mais interessante se torna quando essas histórias tentaram ser vivenciadas a partir de um interesse sempre um tanto objetivo, mas que, como já afirmou Geertz (2001) sempre acabam repousando na tal “ironia antropológica“, sendo aquela que “... repousa ... numa percepção de como a realidade zomba das visões meramente humanas do real...” (2001: 37) ou talvez nas sutilezas ou imponderáveis do cotidiano, ou seja, na “velha” questão da subjetividade versus objetividade.
Mas será que essa discussão é tão “velha” assim? Creio que seja bastante discutida, mas sempre atual. Por que estou discorrendo sobre isso? Como o próprio título desse artigo denuncia, gostaria de tratar um pouco dessa Insustentável Objetividade, visto que possui íntima relação com situações vividas nas pesquisas de campo em ciências sociais e que estão todas ligadas aos relacionamentos que estabelecemos, nós aprendizes de antropólogos ou mesmo os mais “antigos” estudiosos da cultura e do comportamento humana, com nossos informantes.
Isso faz com que nós, cientistas sociais, sejamos às vezes “obrigados” a “relevar” algumas das situações vivenciadas nelas, e termos traquejo para lidar com as mesmas, até porque, nossos objetos de estudos (que na realidade não são objetos e sim pessoas) são dotados de sentimentos, emoções e principalmente esperanças… Dessa forma, percebe-se que a partir dessas sutilezas não dá para sustentar por muito tempo essa tal objetividade que a ciência por tanto tempo almejou e ainda almeja…
Geertz (2001) já discutiu algumas dessas situações que estão ligadas ao ato da pesquisa nas ciências sociais e algumas de suas implicações no que diz respeito à essas questões de subjetividade versus objetividade. Segundo esse autor, o impacto das pesquisas em ciências sociais sobre o caráter de nossa vida acaba ao final sendo determinado pelo próprio tipo de experiência moral que nós viemos a encarnar do que meramente por seus efeitos técnicos. Ele discorre sobre isso, pois os métodos e as teorias da ciência social não estão sendo produzidos por computadores, mas sim, por homens e mulheres que não trabalham em laboratórios, mas, sobretudo em um meio social a que se aplicam os métodos e se transformam as teorias, fazendo com que essa empreitada confira todo um caráter especial e instigante.
Foram exatamente tais reflexões que me motivaram à produção do presente artigo, ainda mais instigadas a partir de discussões que tínhamos na academia, todas elas nas aulas da Pós Graduação em Ciências Sociais, e que exatamente recaíam nessas questões de subjetividade versus objetividade nas pesquisas em ciências sociais.
Algumas das questões analisadas a esse respeito estavam relacionadas com o quê se fazer em campo e de como se portar diante do outro, até porque, uma avaliação das implicações morais do estudo científico da vida humana que não se limite a elegantes zombarias ou celebrações inconseqüentes, deve começar por uma análise da pesquisa social científica como uma modalidade de experiência moral (Geertz, idem).
A partir dessas discussões passei a pensar em algumas das situações que já havia tido experiência na primeira ida ao meu campo de pesquisa a partir do projeto que vinha desenvolvendo e que me fizeram refletir ainda mais o lugar do pesquisador em campo.

Início da história com o “tal” professor Nilton…

No projeto de pesquisa que desenvolvi na Pós Graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal do Pará estudei especificamente cultura material popular pretendendo fazer o levantamento da produção das réplicas e cópias da cerâmica marajoara que são produzidas no município de Cachoeira do Arari, na ilha do Marajó, Pará. A primeira ida à campo foi em 2005 no período de julho, quando fui desenvolver um trabalho específico de revitalização do Museu do Marajó junto a uma grande equipe de alunos e pesquisadores da Universidade Federal do Pará e do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Nesse trabalho de revitalização a ajuda de pessoas da comunidade de Cachoeira do Arari foi de suma importância, pois elas possuíam um amplo conhecimento do museu e de sua exposição, assim como sabiam a melhor forma de manuseio do material e a identificação de todos os objetos pertencentes ao acervo. Foi a partir desse primeiro contato com a comunidade e estendendo-se a todos as reflexões em sala de aula, que essas questões vieram à tona. No meu caso especificamente, uma pessoa na qual tive mais contato da comunidade me fez refletir essas questões da relação pesquisador e nativo. Essa pessoa foi o professor da comunidade, como já citado, Nilton.
Nilton é professor de uma escola no local, mas não falava muito de sua profissão, não sei por que motivo, mas de outras coisas discursava e muito bem. Com todo um “jeitão” de intelectual sempre vinha com discursório sobre os primeiros povos que habitavam o Marajó e da cerâmica marajoara… Quando falei de meu interesse pelo estudo então… A partir dessa nossa conversa que fluía dentro do acervo enquanto ele ia mostrando-me todas as cerâmicas e enquanto eu falava de meu projeto, o professor Nilton passou a ser a pessoa mais indispensável a minha pessoa. Mostrou-se solícito para levar-me a todas as olarias, para falar de todas as cerâmicas e motivos contidos nas peças, assim como falava horas a fio de todas as suas experiências nos tesos7 arqueológicos que já havia visitado. “Abriu os olhos” quando disse que minha pesquisa era atrelada ao Mestrado em Antropologia, demonstrando como se sentia feliz em ter conhecimento de projetos de mestrado que se “preocupam” com o município.
O interessante é que em nenhum momento esbocei qualquer preocupação com o município. Professor Nilton me levou em todas as olarias, apresentou-me a todos os artesãos que se encontravam no local, fez questão de passear comigo por toda cidade para mostrar as “belezas” do Marajó, como ele mesmo dizia, assim como falou dos tesos e cerâmicas encontradas nesses locais. Para finalizar disse que queria levar toda a equipe para uma pracinha do local à noite, pois nós não poderíamos sair de lá sem tomar o leite-de-onça , uma bebida maravilhosa, segundo o professor Nilton, e que seria por “conta da casa”.
Foi a partir de então que ele “abriu o verbo”… nessa noite o professor levou uns três ou quatro garrafões da tal bebida, mas o engraçado foi que ele bebeu muito mais que todos, e a partir do efeito que o “leite-de-onça” lhe causou, ele começou a falar, a desabafar… tudo começou com a história de uma máquina digital que eu carregava para cima e para baixo registrando o museu, assim como a cidade.
Ele me disse que não dispensaria nenhuma das fotos que eu havia tirado por meio daquela “impressionante máquina”, como ele sempre dizia, assim como me intimou a acordar às 6 horas da manhã do outro dia para fazer as fotos da travessia da imagem de São Sebastião para uma fazenda da região (agora imagine acordar às 6 horas da manhã depois de tanto leite-de-onça!). Principalmente o professor Nilton.... Depois ele começou a falar de milhares de pesquisadores e repórteres do mundo todo que por ali já haviam passado e que sempre prometiam mandar todo o material registrado fotograficamente ou das reportagens realizadas e que nunca mandavam (aí já me senti mais pressionada ainda), sem contar que essas pessoas nunca davam créditos em seus trabalhos às pessoas da comunidade onde nunca eram citados em seus livros e no que escreviam sobre o local.
Essa situação de forma específica, me fez refletir a questão da experiência moral enquanto uma modalidade que na grande maioria das vezes, o seu narrador (o informante do antropólogo ou do cientista social), espera muitas coisas desse pesquisador, cria expectativas e também cria uma imagem do pesquisador enquanto uma pessoa que pode mudar ou transformar a situação de seu local e até de sua vida, pois, como afirmou Geertz (idem), os primeiros indícios são os pedidos claros de ajuda material e serviços pessoais por parte dessas pessoas.
Creio que seja nisso que repousa a “ironia antropológica“ discutida por Geertz (idem) na medida em que todas essas expectativas e esperanças vindas em sua maioria dos sujeitos pesquisados, nem sempre são retribuídas, até porque isso não faz parte do trabalho do cientista social, mas que não impede que isso possa se dá e ser retribuído por alguns deles. Quer queira quer não, o pesquisador acaba sempre sendo colocado em uma posição moral, é como se o pesquisador representasse uma vitrine ambulante de oportunidades que eles logo terão na vida (Geertz, idem, p. 38).
Voltando ao relato da história do professor, após todo o falatório ele ainda disse: “quando você voltar novamente para fazer pesquisa, quero observar tudo e toda a sua pesquisa, e após ela pronta gostaria de uma cópia para guardar no museu“. Enfim, o professor Nilton fechou o encontro com muito “leite-de-onça” e sentindo-se muito a vontade para fazer todas as suas exigências e “botar para fora” o que sentia em relação a outras pessoas que por ali passaram. “Pretendo não ser mais traído, já não agüento dar informação e não ver retorno disso”, disse ele, e, para completar, no dia de retorno a Belém, o professor ainda veio no mesmo barco que a equipe para Belém para “cuidar de alguns negócios”.
Quando foi se despedir disse: “não esqueço mais dessa maravilhosa equipe, espero que vocês possam voltar sempre para poderem fazer uma outra revitalização como essa que vocês fizeram no museu, pois o povo da comunidade não faz…” Olhou para mim e disse: “olha, não esqueça de mim…”
Recordando essa situação, refleti também a questão da “ficção parcial”, pois são a partir dessas ficções que essas relações conseguem ser mantidas por determinado tempo, ou seja, como verdades parciais, e, mais ou menos percebidas, a relação entre ambos até progride bem (Geertz, idem, idem).
A partir do ocorrido, eu, na minha angústia e também ingenuidade do primeiro contato com alguém em campo, depois de tantas exigências, a primeira coisa que fiz ao chegar a Belém, foi passar as mil fotos (é a capacidade que a maravilhosa máquina - segundo o professor - tem de armazenagem) para o computador e gravá-las em um Cd sem nenhuma triagem do material.
Mandei logo, logo para o museu! Depois de ter mandado, liguei várias vezes para falar com ele para ter conhecimento se ele especificamente já tinha tido acesso a todo o material, mas infelizmente não conseguir falar com o mesmo nenhuma das vezes. De qualquer forma fiquei tranqüila, pois algumas pessoas do museu me disseram que tinham visto todas as fotos e acharam lindas. Até então fiquei despreocupada.
Cinco meses depois, no início do mês de dezembro de 2005 ocorreu o lançamento da terceira edição de um livro na Estação das Docas. O livro que estava sendo relançado era Os motivos ornamentais da cerâmica Marajoara, produzido por Giovanni Gallo, um padre que atuou assistencialmente durante anos no município de Cachoeira do Arari e que foi uma das pessoas que arquitetou e direcionou o Museu do Marajó de forma mais atuante.
Então, já se pode imaginar como foi o lançamento do livro: muito carimbó, exposição de algumas peças do museu, exposição de fotografias de algumas réplicas da cerâmica marajoara, distribuição de frito do marajó, queijo do marajó (não distribuíram o leite-de-onça) e claro, o lançamento de terceira edição do livro. Como tinham peças do acervo, algumas pessoas do Museu do Marajó estiveram no local para monitorar a exposição, e adivinhe só quem estava monitorando? O Professor Nilton.
Quando cheguei à exposição o mesmo me saudou com muita alegria, perguntou quando eu iria voltar à Cachoeira do Arari, pois achava que eu deveria voltar em janeiro, já que nesse período seria realizado dez dias de festividade de São Sebastião e logo em seguida disse: “você mandou as fotos no Cd, mas não tive a oportunidade de ver nenhuma foto, pois
sabe como é, as pessoas vivem tentando passar a perna em mim no museu, e por isso acabam escondendo as coisas de mim… tu poderias revelar as fotos e levar quando voltasse lá, olha mas não precisa ser todas….os artesãos estão te esperando…”
Nesse momento fiquei sem palavras e afirmei positivamente. Logo em seguida me despedi e depois senti um tanto de desespero e irritação, pois pensei logo o quanto iria ter que gastar em dinheiro com a revelação dessas fotos digitais e ainda tem mais: fazer a triagem das “melhores” fotos para o professor Nilton dentre mais de mil fotos!
Foi exatamente nesse momento que pude perceber literalmente essa insustentável objetividade entre pesquisador e nativo, pois um misto de irritação e ansiedade tomou conta de minha pessoa, principalmente por ter me percebido diante de alguém que por sua posição profissional e perante a comunidade parece ser uma figura principal. E se eu não levar reveladas as tais fotos tão cobiçadas? Como mesmo afirmou professor Nilton, os artesãos estão me esperando…
Essa experiência veio a confirmar o quão difícil, na maioria das vezes, podem ser essas relações estabelecidas entre pesquisador e informante no campo de pesquisa, e também como se tornam complicados de solucionar determinados conflitos que possam vir a surgir, como essa situação caso eu não leve ao professor todas as fotos que exigiu de minha pessoa (Lembrar que Geertz entrou em conflito com seu melhor informante por causa de uma máquina de escrever!).
São questões na qual o cientista social passará e na qual precisará criar estratégias de como lidar com as mesmas, haja vista que não existem “fórmulas mágicas” para lidar com essas situações vivenciadas em campo, pois como já afirmou Geertz (idem): “comprometer-se com o estilo de pensamento chamado ciências sociais é tentar transcender a defasagem lógica que os separa através de um padrão de comportamento que, abarcando-os numa experiência unitária, ligue-os racionalmente. A vocação para confrontar diretamente o divórcio entre a razão e o sentimento (p.46)“.
Enfim, a pesquisa e a relação estabelecida entre pesquisador e pesquisado como percebida e sempre discutida parece sempre estar permeada dessas situações que muitas vezes acabam deixando o cientista social de “saia justa“, mas que, outras vezes acabam sendo engraçadas e divertidas. É isso que faz da ciência social uma ciência instigante…

3. Referências Bibliográficas:
GEERTZ, Clifford. “O pensamento como ato moral: dimensões éticas do trabalho de campo antropológico nos países novos“ IN Nova Luz sobre a Antropologia. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 2001: pp.30-46.
LINHARES, Anna Maria Alves. De “caco” a “espetáculo”: a produção de cerâmica de Cachoeira do Arari, ilha do Marajó, Pará, Dissertação de Mestrado, Belém, UFPA, 2007
SCHAAN, Denise. “Cerâmica para festas, ritos e funerais: o simbolismo sagrado da Arte Marajoara“ IN Brésil Indien: Lês Arts dês Amérindiens du Brésil. GRUPIONI, L. D. (ed). Editions Hoebeke. Paris, 2005.

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