sábado, 8 de janeiro de 2011

Da dádiva e, em particular, da obrigação de retribuir.

Estou a ler o livro Sociologia e Antropologia, mais especificamente o artigo "Da dádiva e, em particular, da obrigação de retribuir" escrito por Marcel Mauss. Acredito ter lido o artigo mais de 5 vezes, todas as vezes por motivos acadêmicos. Leio mais uma vez pelo mesmo motivo, mas nunca deixo de surpreender-me com o texto, pois o sistema de prestações e contraprestações é algo muito recorrente em nosso cotidiano.
Gosto muito do poema do Eda escandinavo (estrofes de Havamál) que inicia o referido artigo:

"Nunca encontrei homem tão generoso
e tão liberal para alimentar seus hóspedes
que receber não fosse recebido, nem homem tão (falta o adjetivo) de seus bens
que receber de volta lhe fosse desagradável,

Com armas e vestes
devem os amigos agradar-se;
cada um o sabe por si mesmo (por sua própria experiência). Aqueles que retribuem mutuamente os presentes são amigos por mais tempo
se as coisas conseguem tomar bom aspecto.

Deve-se ser amigo
para com o amigo
e retribuir presente com presente;
deve-se ter
riso por riso
e logro por mentira.

Tu o sabes: se tens um amigo
no qual tens confiança
e queres obter bom resultado,
é preciso misturar tua alma à dele
e trocar presentes
e visitá-lo amiúde.

Mas se tens um outro
de quem desconfias
se queres chegar a bom termo,
e preciso dizer-lhe belas palavras,
mas ter pensamentos falsos
e retribuir logro com mentira.

É assim com aquele
em quem não tens confiança
e de cujos sentimentos suspeitas,
é preciso sorrir-lhe,
mas falar sem coração:
os presentes retribuídos devem ser semelhantes aos presentes recebidos.

Os homens generosos e valorosos têm a melhor vida;
não têm medo algum.
Mas um poltrão tem medo de tudo;

O avaro tem sempre medo dos presentes."
-
Em vários momentos do texto, Marcel Mauss enumera exemplos de sociedades que trocam bens, presentes e dádivas entre si. O autor trata principalmente dos Polinésios e Melanésios. Segundo Mauss, tais dádivas são sistemas de prestações totais. Aquele grupo que recebe determinado bem tem sempre a obrigação de retribuí-lo sob pena de sofrer alguma sanção. Ele trata do potlatch e do Kula, principalmente.
Tanto em uma sociedade como na outra, destroem-se objetos para o outro grupo com o objetivo de mostrar poder e valor. Se oferece presentes, pulseiras, braceletes e outras riquezas. Geralmente se oferece bens "gratuitamente", ou seja, sem a intenção de receber de volta. Mas na realidade, os grupos que recebem os presentes, precisam retribuí-los, e aqueles que dão, sempre esperam o retorno. Se não os fizer, se desfaz os laços entre os grupos e demonstra-se avareza e não poderio perante o outro. Outra coisa importante entre os diversos exemplos mostrados por Mauss é a "obrigação" de receber o presente. Se algum grupo não receber determinado presente que for oferecido por outro grupo, demonstra término de aliança ou quebra de contrato.

Malinowski em um dos rituais do "Kula" nas Ilhas Trobriandesas, onde troca-se valiosas pulseiras e braceletes, principalmente.

É interessantíssimo ler as etnografias e ver a infinidade de exemplos desses sistemas de prestações e contraprestações.
Não é à toa que logo no início do artigo, Mauss fez questão de colocar o referido poema escandinavo. Algumas de suas estrofes demonstram bem o que está por detrás desses rituais e trocas intertribais. O verso "os presentes retribuídos devem ser semelhantes aos presentes recebidos" mostra o quanto todos os bens que determinada sociedade recebe deve ser retribuido a altura ou ainda melhor.
Será que não é assim também em nossa sociedade? Quando recebemos um presente de um amigo ou parente não sentimos necessidade de retribuí-lo? Obviamente que sentimos essa necessidade se temos afinidades com aquele sujeito, pois se não temos, provavelmente não retribuiremos e o sujeito que deu o presente sente que a aliança foi desfeita ou não terá continuidade. Marcel Mauss tratou disso.
"O avaro tem sempre medo dos presentes". Aquela pessoa que tem dificuldade de retribuir um presente, um afeto, um amor, um sorriso ou um abraço é alguém avarento. Por que então querer um presente já que terei de retribuí-lo? Prefere não receber algo para não ter que prestar contas daquilo.
É bacana ler esse artigo e ver como muitas questões que envolvem esse sistemas analisados por Mauss podem ser vistos na nossa sociedade.
Toda "coisa" recebida tem um hau, uma essência, ou seja, um valor espiritual que nos ligam uns aos outros. Marcel Mauss vai chamar de vínculo espiritual que travamos com aqueles que nos dão um presente e que retribuimos depois de um tempo. Recusar dar, negligenciar convidar, assim como recusar receber, equivale a declarar guerra, é recusar aliança e comunhão.
Então muito cuidado com os vínculos que vocês estabelecem, meus leitores. Se não quer ter um vínculo espiritual com alguém, evite presentear. Ou se você quer fortalecer a comunhão com um grupo ou alguém, retribua aquele afeto, aquele carinho ou aquele presente. Mas não esqueça: precisa ser uma retribuição equivalente ou maior do que aquilo recebido.
Fiquem de "Olho na cultura" e nos contratos que vocês estabelecem entre si, hein?


















Um comentário:

  1. São estudos originais como esse de Mauss e Malinowski que mostram a ligação entre a pesquisa acadêmica e a vida de todos nós, seja na Polinésia, em Paris, em qualquer parte do mundo. E mostram o quanto podemos nos ver, vendo o "Outro". Bjs.

    ResponderExcluir