sábado, 22 de janeiro de 2011

Encontros antropológicos promovem "grandes encontros antropológicos".

Para um amigo. Para um irmão.
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Era julho de 2003.

Sou cientista social, antropóloga, estudiosa da cultura e do comportamento humano. Observo-o academicamente e não academicamente. Sempre gostei de participar de encontros, seminários, eventos e palestras da minha área. Quase toda vez que tem algum encontro em Antropologia eu estou por lá. Na época de minha graduação fui bolsista de iniciação científica no Museu Paraense Emílio Goeldi na área da Antropologia e sempre apresentava o resultado de meus trabalhos em eventos. Na época tive conhecimento de um encontro em Recife (Pernambuco) da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Prontamente fiz minha inscrição em um Grupo de Trabalho intitulado "Antropologia da Arte", salvo engano. Fiz inscrição em outro grupo que não me recordo nesse momento. Meses depois recebi via e-mail o resultado: ambos aceitaram meu trabalho de pesquisa sobre a cultura material indígena Karajá, as bonecas Karajá. Um trabalho lindo, lindo já postado aqui nesse blog.
Como eu era uma mera estudante, tinha pouco dinheiro para viagens, mas sempre me unía ao CA (Centro Acadêmico) para buscar recursos que pudessem viabilizar minhas empreitadas antropológicas. Íamos para o sinal de trânsito pedir dinheiro, vendíamos caipirinhas em festinhas na universidade e etc, etc, etc. Assim eu consegui. Lá eu ia mais uma vez para outro grande encontro de Antropologia.
Na realidade eu sempre unia encontros e passeios, pois sempre gostei de viagens e de conhecer culturas diferentes da que vivo. Sempre "De olho na cultura"...
Fui em um ônibus lotado de estudantes de várias áreas das Ciências Humanas, mas na sua grande maioria eram alunos das Ciências Sociais. Minha companheira nessas viagens antropológicas na época era Tay Gama, que hoje mora em São Paulo e trabalha em uma empresa de arqueologia. Resolvemos procurar um hotel para nos hospedarmos em Recife. Procuramos o hotel via internet.
Encontramos.
Hotel de preço bom, bonito, confortável e super aconchegante. Fechamos o contrato.
Tay me disse que iríamos dividir apartamento com outras pessoas. No dia da viagem me apresentou uma dessas pessoas:

- Anna, deixa eu te apresentar. Esse é o Jô.
-Oi Jô, tudo bom?
-Tudo. Viajaremos juntos.
-Legal.

A viagem aconteceu. Super cansativa, visto que enfrentamos quase 3 dias de estrada. A grande vontade era da chegada no hotel super confortável. Chegamos no terminal rodoviário e pegamos um trem rumo ao hotel que ficava no bairro de "Peixinhos". Ao chegarmos no final da estação, pegamos um táxi. Quando chegamos no hotel, o susto: o hotel ficava ao lado de um terreno abandonado, quartos pequenos e escuros, sem aquela linda piscina que vimos nas fotos, soturno e excêntrico demais para meu gosto, ou seja, fomos enganados. Um misto de raiva e indignação percorreu nossas veias. O que fizemos? Fomos conhecer a cidade e procuramos outro hotel no dia posterior.
Eram 23h e saimos. Nessa noite fomos a uma boate de hip hop, conhecemos o Centro Antigo da cidade e amanhecemos dançando Bob Marley na orla do Centro Antigo de Recife. Precisávamos né?
Passei a olhá-lo de modo diferente. De apenas um nome, passou a ser moreno, baixinho, extrovertido, extremamente irônico, simpático e muito, mas muito sarcástico. Todos esse atributos chamaram minha atenção.
Tínhamos um quê de independência e isso nos ligava ainda mais.
Na época havia um grupinho muito apaixonado por uma tal de "Antropologia visual". Aquilo me assustava um pouco, pois tudo, absolutamente tudo era fotografado por esse grupinho, que eu não fazia parte. Meu lance sempre foi cultura material e "Antropologia da Arte".

- Olha, não quero minha imagem vinculada em lugar nenhum. Eu processo se souber de minha imagem em algum lugar ou com alguma vinculação pública.

As risadas, os porres, o jeito sarcástico, as conversas sérias e tolas (na sua grande maioria, mas sempre com altas pitadas de humor inteligente), os estresses entre os colegas no quarto do hotel (que já era em Olinda a beira-mar depois da decepção via internet), as fugidas dos pivetes nas ruas de Olinda, os dias amanhecidos naquela cidade maravilhosa, as fofocas sobre os palestrantes e coordenadores das mesas, os flertes e paqueras, as danças, a companhia. Isso bastou.
Parece que o cupido chegou. Mas daqueles cupidos que chegam para aqueles amores para sempre, não amores de verão.
O encontro acaba. Finalizamos com chave de prata (minha preferência), numa festa linda, onde dançamos até o amanhecer danças de roda, danças negras, afoxé. Foi tudo mágico e antropológico.
De volta à realidade. Nos afastamos. Ele era de História e eu era das Ciências Sociais, ele era de um mundo e eu era de outro. Mundos que nos unem apenas em encontros, festinhas e tal. Mas, eu não disse que o cupido chegou para aqueles amores que parecem que durarão para sempre?
Nos afastamos, mas foi inevitável. Algo nos uniu de novo que não lembramos de jeito nenhum o que foi realmente. Mas nem precisa ser lembrado.
Em um desses reencontros:
- Anna, sabe lá no hotel em Olinda?
- Sei.
- Pois é, tirei foto de tuas calcinhas penduradas enquanto secavam. A fotografia ficou muito boa, cara...
- Hã??
- Sim.

Pensei: cara, que abuso. Pensei de novo: esse povo que é metido a "mexer" em "Antropologia visual" é foda...
Depois desse diálogo, muitas coisas mudaram. Senti que minha vida estava toda com esse criatura. Imagina alguém com fotos de tuas calcinhas?? O que mais essa pessoa poderia querer de mim? Já estava com toda minha vida...
A partir desse diálogo, todos os nossos encontros iniciavam assim:

- Eu quero a foto de minhas calcinhas. Pode ser?
- Hahahaha! Eu vou te dar. Calma.
- Calma?? São minhas calcinhas, cara...
- Hahaha! Tenho que revelar as fotos.

Por que eu não processei essa criatura??? Pensei.
Passamos a nos encontrar mais, a nos ver mais, a nos falar mais e a nos sentir mais.
Ano passado estive na sua casa e relembrei:

- Cadê a fotografia?
- Está aqui.

Não era a fotografia, mas o negativo da imagem. No fundo eu as via. Mas não foram reveladas. Bem ao estilo dele. Sempre com atrasos de 40 minutos... Acho que até hoje não foi revelada, mas ela pôde revelar, dentre outras coisas, a promoção de um encontro que não se esquecerá nunca mais. Grata surpresa me proporcionou Recife.
Descobri também que ele é apaixonado por uma das maiores intérpretes desse país (que também eu sou apaixonada) e que uma música interpretada por essa cantora nos unia ainda mais:

"Pois se é noite de completa escuridão
Provo do favo de teu mel
Cavo a direta claridade do céu
E agarro o sol com a mão..."

Já se foram 8 anos. Mas parece amor de mil vidas, como diria Dulce Quental.
Quando me sinto em completa escuridão, provo do favo de teu mel e prontamente cavo a direta claridade do céu.
Nem lembro o que líamos, mas é o que menos importa.

Por isso que é sempre bom ficarmos "De olho na cultura", pois encontros antropológicos promovem "grandes encontros antropológicos".
Continuem "De olho na cultura".




sábado, 8 de janeiro de 2011

Da dádiva e, em particular, da obrigação de retribuir.

Estou a ler o livro Sociologia e Antropologia, mais especificamente o artigo "Da dádiva e, em particular, da obrigação de retribuir" escrito por Marcel Mauss. Acredito ter lido o artigo mais de 5 vezes, todas as vezes por motivos acadêmicos. Leio mais uma vez pelo mesmo motivo, mas nunca deixo de surpreender-me com o texto, pois o sistema de prestações e contraprestações é algo muito recorrente em nosso cotidiano.
Gosto muito do poema do Eda escandinavo (estrofes de Havamál) que inicia o referido artigo:

"Nunca encontrei homem tão generoso
e tão liberal para alimentar seus hóspedes
que receber não fosse recebido, nem homem tão (falta o adjetivo) de seus bens
que receber de volta lhe fosse desagradável,

Com armas e vestes
devem os amigos agradar-se;
cada um o sabe por si mesmo (por sua própria experiência). Aqueles que retribuem mutuamente os presentes são amigos por mais tempo
se as coisas conseguem tomar bom aspecto.

Deve-se ser amigo
para com o amigo
e retribuir presente com presente;
deve-se ter
riso por riso
e logro por mentira.

Tu o sabes: se tens um amigo
no qual tens confiança
e queres obter bom resultado,
é preciso misturar tua alma à dele
e trocar presentes
e visitá-lo amiúde.

Mas se tens um outro
de quem desconfias
se queres chegar a bom termo,
e preciso dizer-lhe belas palavras,
mas ter pensamentos falsos
e retribuir logro com mentira.

É assim com aquele
em quem não tens confiança
e de cujos sentimentos suspeitas,
é preciso sorrir-lhe,
mas falar sem coração:
os presentes retribuídos devem ser semelhantes aos presentes recebidos.

Os homens generosos e valorosos têm a melhor vida;
não têm medo algum.
Mas um poltrão tem medo de tudo;

O avaro tem sempre medo dos presentes."
-
Em vários momentos do texto, Marcel Mauss enumera exemplos de sociedades que trocam bens, presentes e dádivas entre si. O autor trata principalmente dos Polinésios e Melanésios. Segundo Mauss, tais dádivas são sistemas de prestações totais. Aquele grupo que recebe determinado bem tem sempre a obrigação de retribuí-lo sob pena de sofrer alguma sanção. Ele trata do potlatch e do Kula, principalmente.
Tanto em uma sociedade como na outra, destroem-se objetos para o outro grupo com o objetivo de mostrar poder e valor. Se oferece presentes, pulseiras, braceletes e outras riquezas. Geralmente se oferece bens "gratuitamente", ou seja, sem a intenção de receber de volta. Mas na realidade, os grupos que recebem os presentes, precisam retribuí-los, e aqueles que dão, sempre esperam o retorno. Se não os fizer, se desfaz os laços entre os grupos e demonstra-se avareza e não poderio perante o outro. Outra coisa importante entre os diversos exemplos mostrados por Mauss é a "obrigação" de receber o presente. Se algum grupo não receber determinado presente que for oferecido por outro grupo, demonstra término de aliança ou quebra de contrato.

Malinowski em um dos rituais do "Kula" nas Ilhas Trobriandesas, onde troca-se valiosas pulseiras e braceletes, principalmente.

É interessantíssimo ler as etnografias e ver a infinidade de exemplos desses sistemas de prestações e contraprestações.
Não é à toa que logo no início do artigo, Mauss fez questão de colocar o referido poema escandinavo. Algumas de suas estrofes demonstram bem o que está por detrás desses rituais e trocas intertribais. O verso "os presentes retribuídos devem ser semelhantes aos presentes recebidos" mostra o quanto todos os bens que determinada sociedade recebe deve ser retribuido a altura ou ainda melhor.
Será que não é assim também em nossa sociedade? Quando recebemos um presente de um amigo ou parente não sentimos necessidade de retribuí-lo? Obviamente que sentimos essa necessidade se temos afinidades com aquele sujeito, pois se não temos, provavelmente não retribuiremos e o sujeito que deu o presente sente que a aliança foi desfeita ou não terá continuidade. Marcel Mauss tratou disso.
"O avaro tem sempre medo dos presentes". Aquela pessoa que tem dificuldade de retribuir um presente, um afeto, um amor, um sorriso ou um abraço é alguém avarento. Por que então querer um presente já que terei de retribuí-lo? Prefere não receber algo para não ter que prestar contas daquilo.
É bacana ler esse artigo e ver como muitas questões que envolvem esse sistemas analisados por Mauss podem ser vistos na nossa sociedade.
Toda "coisa" recebida tem um hau, uma essência, ou seja, um valor espiritual que nos ligam uns aos outros. Marcel Mauss vai chamar de vínculo espiritual que travamos com aqueles que nos dão um presente e que retribuimos depois de um tempo. Recusar dar, negligenciar convidar, assim como recusar receber, equivale a declarar guerra, é recusar aliança e comunhão.
Então muito cuidado com os vínculos que vocês estabelecem, meus leitores. Se não quer ter um vínculo espiritual com alguém, evite presentear. Ou se você quer fortalecer a comunhão com um grupo ou alguém, retribua aquele afeto, aquele carinho ou aquele presente. Mas não esqueça: precisa ser uma retribuição equivalente ou maior do que aquilo recebido.
Fiquem de "Olho na cultura" e nos contratos que vocês estabelecem entre si, hein?