sábado, 24 de abril de 2010

Belo Monte não deve pacificar Altamira.

Belo Monte não deve pacificar Altamira - 19/04/2010
Local: São Paulo - SP
Fonte: Valor Econômico
Link: http://www.valoronline.com.br/

Daniela Chiaretti

Que Altamira precisa de um projeto de desenvolvimento, ninguém discorda. Mas o apelido do município de 100 mil habitantes, " Princesinha do Xingu " , soa sarcástico quando se dá uma olhadela na cidade de infraestrutura inexistente. O que Altamira tem de bonito é o rio, embora a disposição das mesas nos botecos da orla, curiosamente, dê as costas ao Xingu. A polêmica em torno a como melhorar a região acende se as fichas são colocadas na hidrelétrica de Belo Monte. Basta uma caminhada pela 7 de Setembro, a rua comercial da cidade, ou pelos armazéns do porto, para sentir que a simpatia à usina de R$ 20 bilhões a R$ 30 bilhões não é unanimidade.
Nos vidros da ótica A Turmalina, um adesivo verde ( " Sou a favor de Belo Monte " ) escancara a predileção ao projeto. " Claro que sou a favor! Altamira precisa da usina " , entusiasma-se o cearense Genival Alves da Costa, morador na cidade há 30 anos. " E olha que tenho dois lotes na região que vai ser alagada e que estão produzindo, um tem cacau, o outro, pasto. " A mulher ao seu lado no balcão escuta o que ele diz, faz cara feia, dá de ombros e some pela porta dos fundos. " Lucineide é minha esposa. Ela é contra " , explica. " É muito religiosa. Tem as ideias de Dom Erwin na cabeça " , continua, citando o bispo da Prelazia do Xingu, uma das mais fortes vozes de oposição à hidrelétrica. Em Altamira, Belo Monte divide famílias.
Seus quase 100 mil habitantes se alinham em três frentes. Há o grupo do que são claramente a favor, o dos que estão radicalmente contra e a maioria da população que não faz ideia do que pensar. Nos dias que antecedem o leilão, contam-se histórias de um gaúcho que alugou um prédio para montar a segunda churrascaria da cidade, antecipando-se à concorrência, aos clientes que ainda não existem e à própria decisão de se fazer a usina. Um empresário já contraiu empréstimo de R$ 700 mil para construir um prédio apostando no boom econômico da hidrelétrica que ainda é de papel.
" Ao contrário do que as pessoas pensam, o leilão não irá celebrar o final do embate " , diz Ana Paula Souza, coordenadora da Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP), que existe há 20 anos e é a principal entidade dos movimentos sociais na Transamazônica. " Aqui há um movimento de resistência à usina há mais de 30 anos. Jamais será como Tucuruí. Esta luta contra Belo Monte está longe de acabar. "
Costa, o dono da ótica, diz que se a hidrelétrica não sair, está " programado para ir embora para Goiânia " , onde mora um filho. O comerciante parece ter todas as respostas. " A usina vai trazer asfalto e benefícios " , pontua, dizendo que Altamira " caiu depois da morte da irmã Dorothy " . Os acusados de serem os mandantes do assassinato da missionária Dorothy Stang viviam na cidade, lembra. O declínio de Altamira, acredita, aconteceu porque a região teria ficado na mira da fiscalização federal, como a operação que fechou madeireiras ilegais. " A represa está longe daqui, o efeito vai ser o de uma enchente forte do rio " , assegura. Mas o que vai acontecer aos araras, jurunas e caiapós que vivem nos 100 quilômetros de rio onde a água vai diminuir? " Não tem índio na Volta Grande " , irrita-se. Para ele, o único risco de Belo Monte é repetir Tucuruí e " não dar assistência ao pessoal alagado. "
Altamira é um lugar fora da lógica do Sul e Sudeste. Fica a 380 quilômetros de Tucuruí, mas só em 1998 começou a receber energia elétrica da usina inaugurada 14 anos antes. Depois das operações do Ibama e da Polícia Federal nas madeireiras, a elite local puxou uma grande passeata - contra a polícia. Enviar e-mail é teste de paciência, mas à noite é comum ver moradores com laptops nas cadeiras de plástico da orla, aproveitando a melhor conexão da cidade. Há tráfego constante de caminhonetes L-200 ao lado de carros velhos e carroças puxadas por jegues. A demanda por médicos é enorme: os que atendem em Altamira podem ganhar R$ 30 mil ao mês.
" Altamira é uma fronteira " , diz Ana Paula, da FVPP. " A trajetória desta região é marcada pelo saque das riquezas " , continua. Primeiro foi o ouro, depois a madeira, agora é a água, lista. " Gente que defende a obra às vezes tem este mesmo discurso predador. " Na opinião dela, para receber um empreendimento da magnitude de Belo Monte, que pode dobrar a população da cidade, a região teria que estar razoavelmente organizada. Ela teme o caos urbano que se anuncia. " O risco é de a obra trazer ainda mais problemas sociais para o próprio Estado. " A tentativa da fundação é descolar o debate de Belo Monte da necessidade de desenvolvimento da região. " A proposta da usina não tem nada a ver com a intenção de fazer algo para esta área. Se o rio não estivesse aqui, nem ligariam para a gente. "
É a posição contrária à de seu marido. Rainério Meireles da Silva, coordenador do campus da Universidade Federal do Pará em Altamira, é um entusiasta da hidrelétrica. " Belo Monte é um grande projeto se for estabelecido dentro de uma estratégia de desenvolvimento regional. E eu penso que isso é possível de ser feito " , argumenta. " Se pudermos aplicar R$ 50 milhões a R$ 100 milhões em educação, ganharemos muito " , diz, referindo-se aos recursos para fazer decolar o Plano de Desenvolvimento Regional que devem estar acoplados à obra. Ele chegou a Altamira em 2002 e vê mudanças positivas na cidade no período. No campus, à época, eram apenas 12 professores e 400 alunos; hoje são 100 docentes e 1.300 alunos.
Na cidade, os humores em relação a Belo Monte oscilam à medida em que se ande em direção aos lugares mais baixos. Nas palafitas que ficam às margens dos igarapés Altamira e Ambé, cerca de 16 mil pessoas, segundo o projeto, terão que se mudar porque as casas serão alagadas. Luis Xipaia, liderança de índios que vivem na cidade há muito tempo, mora às margens de um dos igarapés. " O PAC, para nós índios, é um programa de destruição " , diz. " Virão muitos aventureiros à nossa região, aumentará a criminalidade. Não é bom. " No porto, em uma das balsas que ficam ancoradas e funcionam como bares ou mercados, o funcionário Robson Alves da Silva diz que não é a favor da obra. " Vai afetar muito os ribeirinhos. E acabar com as praias, que é nosso lazer no verão. Aqui dá movimento direto, vem muita gente das cidades vizinhas. "Na rua de comércio, Pedro Soares, gerente de uma das lojas Armazém Paraíba, nota que as vendas de colchões, fogões e geladeiras aumentaram 20% a 25% em relação ao mesmo período de 2009. " São pessoas de Belém, de São Paulo, de Minas " , diz. A procura por móveis de escritório é tanta que ele sugeriu à direção da empresa que estude trabalhar com esta linha de produtos. " Sou a favor da usina, mas tenho medo. E quando acabar a construção, como vai ficar? "

Kaiapó





quinta-feira, 15 de abril de 2010

O Museu do Marajó pede socorro! Anna Maria Alves Linhares.

Hoje foi publicado o artigo postado no blog dia 17/03/10. O artigo foi escrito por mim e publicado na revista eletrônica "Revista Museu - cultura levada a sério".



http://www.revistamuseu.com.br/artigos/art_.asp?id=23434

Leiam, comentem e conheçam a revista!



Bom final de semana para todos meus seguidores e leitores.

Belo monte pode levar índios à guerra!

A oposição à hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, está unindo grupos indígenas distantes e muito diversos. Uma ideia em discussão é montar uma aldeia multiétnica no ponto onde se prevê a construção da barragem. Na região da Volta Grande, o trecho de 100 quilômetros que sofrerá o impacto do desvio das águas, jurunas, araras e caiapós temem que a usina acabe com os peixes e inviabilize o transporte pelo Xingu. Os caciques dizem que os índios não foram ouvidos e que se o governo insistir com Belo Monte, irão à guerra. Uma sinfonia de galos é o despertador de quem vive na terra indígena arara da Volta Grande do Xingu, no Pará. Começa às 4h e segue pela madrugada com pausas ritmadas, espécie de tecla soneca da floresta. Lentamente as portas das malocas se abrem e alguns vão pescar. As crianças são as últimas a pular da rede em mais um dia sem aula, porque a professora está fazendo curso na Vila da Ressaca, a comunidade do garimpo a 15 minutos de barco. Às 6h, com o dia já claro, o rádio de alguém começa a funcionar bem na hora em que o locutor faz comentários sobre um travesti. A bizarrice cala os galos. Em minutos, toda a aldeia está de pé. Em pé de guerra, os araras e seus "parentes", os índios das outras etnias, podem ficar logo. A ameaça está no ar, por mais esquisita que pareça agora, quando a aldeia cheira a café e cuscuz de milho e algumas mulheres estão metidas no Xingu a lavar bebês e panelas. "Já divulgamos um documento para que todos tivessem conhecimento da luta indígena", lembra José Carlos Arara, 30 anos, metade da vida como cacique das 20 famílias que vivem aqui e mais algumas pela redondeza. Ele se refere à carta que caiapós, xipaias, jurunas e araras da região do Xingu, e mais guaranis e ianomâmis, encaminharam em dezembro ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Lá dizem que vão resistir aos planos do governo de construir a segunda maior hidrelétrica do Brasil justamente neste canto do Pará. "O Xingu pode virar um rio de sangue", avisam. O Xingu nesta manhã de quarta-feira não poderia estar mais tranqüilo e prateado. Parece mesmo ser a "casa dos deuses", a tradução mais aceita do seu nome tupi. É inverno na Amazônia e o Xingu se comporta como se espera, muito cheio. As voadeiras de Altamira, os barcos a motor típicos da região, trafegam sem problema neste trecho onde o rio faz a curva. Tudo o que é baixo está submerso: árvores, ilhas e pedras. Não há sombra das praias do verão, o lazer preferido de índios, garimpeiros e ribeirinhos que vivem por aqui ou dos lavradores, fazendeiros e comerciantes da cidade. Lá embaixo, no fim da curva, a muitas dezenas de quilômetros e depois de várias cachoeiras, está Belo Monte. É o pivô da discórdia. Hoje, Belo Monte nomeia um punhado de casas na beira da Transamazônica, a uma hora de Altamira e bem no fim da curva do Xingu. Para o governo Lula, é o nome da principal obra do PAC, uma hidrelétrica que os críticos dizem pode custar R$ 30 bilhões e, segundo técnicos envolvidos no projeto, em dez anos há de ser a segunda usina do Brasil em geração de energia. Para os índios do Xingu "é o pesadelo que a gente vive", nos termos do cacique arara. Os índios do Xingu escutam falar de planos para barrar o rio há mais de 30 anos. Em 1975, a Eletronorte começou a pesquisar a área e fez uma escolha faraônica: construir seis usinas, batizando todas com nomes indígenas. A versão Kararaô das hidrelétricas sofreu forte oposição dos índios de toda a bacia e ultrapassou fronteiras. O líder caiapó Raoni fez uma cruzada internacional apoiado pelo roqueiro inglês Sting. Os caiapós organizaram o 1º Encontro das Nações Indígenas do Xingu, em Altamira, em fevereiro de 1989. Eram 600 índios pintados para a guerra. A foto da índia Tuíra esfregando o facão no rosto do então diretor de engenharia da Eletronorte José Antonio Muniz Lopes, hoje presidente da Eletrobras, exibia a hostilidade indígena aos planos dos brancos de mexerem no rio que consideram sagrado (uma cena que se repetiu há dois anos, em versão mais sangrenta, quando os caiapós se irritaram com a apresentação do engenheiro da Eletrobrás Paulo Rezende, o rodearam e ele acabou ferido em um braço). Kararaô foi arquivada, mas os estudos foram retomados e o projeto ressurgiu em uma versão em que parte da terra indígena Paquiçamba, onde vivem jurunas, e Arara da Volta Grande, seria inundada. No desenho atual, isto não vai acontecer. Mas o problema agora é outro: pelo traçado de Belo Monte, o risco é que nos 100 quilômetros desta curva de rio falte água. "Nós povos indígenas não vamos ser sufocados de jeito nenhum", diz José Carlos Arara ao Valor. "Vamos declarar guerra ao governo brasileiro caso não desistam de querer construir." Seus vizinhos da outra margem do rio, os juruna liderados pelo cacique Giliarde, falam no mesmo tom. "Já mandamos o nosso recado, já foi dada a conversa nossa. Se tiver barragem, vai ter guerra." O líder juruna continua: "Para fazer Belo Monte tem que passar por cima dos índios. E passar por cima dos índios é a morte." A articulação indígena já começou em todo o Xingu. Quando James Cameron, o cineasta de "Avatar", soube de Belo Monte e foi seduzido a conhecer a região, aportou justamente nesta aldeia arara. O batismo de Cameron na Amazônia foi há 20 dias. Havia uns 80 índios de 13 aldeias. Tinham acabado de matar um bando de porcos do mato e suas tripas ainda estavam perto do rio quando o diretor chegou com mulher e equipe. Cameron teve o rosto pintado, gravou depoimentos, passou a noite no barco e retomou as conversas pela manhã. Ao jornalista do "The New York Times" que acompanhou o evento ele disse que a "hidrelétrica é a quintessência do que mostramos em Avatar: o confronto entre a visão de progresso da civilização tecnológica às custas do mundo natural e das culturas indígenas que vivem ali." Leôncio Arara, 72 anos, avô de José Carlos e que vive naquele pedaço de terra desde que nasceu, traduz o encontro à sua maneira. "Ele escutava a gente e o outro repassava para ele. Disse pra mim que doía no coração dele aquela barragem." Leôncio, o homem sábio da aldeia, confessa que vive pensando só em Belo Monte. "A vida aqui é tranqüila. Temos a grande riqueza do rio, buscamos caça, temos batata, macaxeira, milho, feijão e arroz na roça. Pode ser que eu não alcance, mas para meus netos, meus bisnetos, vai acabar a fartura. O tracajá, o cari, os peixes vão sumir. Até nosso transporte, sem água, como vai ser?" No encontro com o cineasta, por dois momentos os índios pediram que todos os brancos se retirassem, inclusive Cameron e companhia. Ficaram sozinhos sob a mangueira. Ninguém sabe o que falaram e eles não contam muito. Mas começa a tomar corpo a ideia de montarem uma aldeia com as diversas tribos do Xingu nas proximidades do Sítio Pimental, onde os empreendedores querem construir a barragem principal. Ali, pensam em instalar três famílias de cada tribo e montar uma espécie de resistência física à obra. O plano é não permitir que "construam a parede". Enquanto o presidente Lula reage à pressão das empreiteiras, prepara o leilão do dia 20 e diz, "em alto e bom som", que irá fazer a hidrelétrica, os grupos indígenas armam a estratégia de pressão. Cameron, que voltou ao Brasil para lançar a versão de "Avatar" em DVD, retorna à Volta Grande amanhã. Desta vez vai a uma das aldeias caiapós do Bacajá, um afluente do Xingu no trecho em que a vazão de água pode ser reduzida. A atriz Sigourney Weaver, a cientista de "Avatar" mais conhecida por "Alien", deve ir junto. Raoni e o sobrinho Megaron são esperados, assim como outros índios do Mato Grosso. "Parentes" que vivem na cidade de Altamira, em palafitas à beira dos igarapés que encherão com o reservatório, também engrossarão o grupo. A luta indígena contra Belo Monte uniu tribos muito distantes e grupos muito diferentes entre si. Também provocou baixas. Ninguém gosta de falar disso, mas o nome de Paulinho Paiakan causa constrangimento. O líder caiapó do sul do Pará foi à audiência pública em Altamira, em setembro, e faria parte da minoria indígena a favor da usina. "Parece que os caiapós o baniram", conta um índio. O maior e mais guerreiro grupo do Xingu, os caiapós, com suas diversas lideranças, não concordam sempre com tudo, mas a oposição às hidrelétricas no Xingu é ponto de honra. Eles se sentiram ofendidos quando o ex-ministro Edison Lobão disse que "forças demoníacas" impediam a construção de Belo Monte. Mesmo que não sejam diretamente afetados pela usina, os caiapós do Alto Xingu acreditam que a intenção é fazer outros barramentos no rio e se solidarizam com os grupos mais atingidos no desenho atual. Belo Monte também dividiu os juruna do Paquiçamba. Algumas das 23 famílias da reserva são favoráveis à obra. Os outros, liderados por Giliarde, são contra e planejam construir nova aldeia um pouco adiante. Vão abandonar as casas onde sempre viveram e onde a Eletronorte colocou placas de energia solar - que não funcionavam na semana passada. "Belo Monte para nós não vai trazer nenhum benefício", diz Ozimar Juruna. "Vamos ter menos água e mais gente invadindo estas terras." Além do medo do impacto de Belo Monte, os índios da Volta Grande se sentem traídos pela Eletronorte, a Funai e o Ibama. "Eles prometeram oitivas, com gente do Congresso, e diziam vieram só para explicar. E era só palavra técnica, que a gente não entende", reclama Giliarde Juruna, lembrando visita recente dos técnicos do governo. Circula pelas aldeias um DVD do Ministério de Minas e Energia com o título "Oitivas nas Aldeias do Xingu". Os índios dizem que foram enganados e ainda esperam que venham ouvi-los. Este promete ser mais um ponto de atrito. O movimento indígena de oposição a Belo Monte costumava andar colado aos movimentos sociais da região. Até o momento em que os índios se recolheram e resolveram fazer do seu jeito. "É difícil prever o que pode acontecer", diz Marcelo Salazar, coordenador-adjunto do Parque do Xingu do Instituto Socioambiental (ISA). "Os índios estão muito bravos." Na aldeia arara, ninguém anda pelado, todos falam português e as casas não são redondas. Para confundir mais quem espera cocar e caldeirão, à noite, nas horas em que funciona o gerador a diesel, o ritual é ficar bem calado vendo a novela das seis, a das sete e a das oito. Muitos sinais da cultura se perderam e os que resistem não são óbvios. Meninas abrem frutos de urucum e treinam pintura corporal borrando o rosto dos menores e a molecada continua a brincadeira da tarde anterior: acertar cachos de banana com pequenos arcos e flechas pontudas. Para os forasteiros há duas mensagens claras: que os araras estão felizes neste espetacular canto paraense de rio e que ficam tensos quando escutam falar na usina de Belo Monte.

Daniela Chiaretti - http://www.valoronline.com.br/

Arara

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Ode triunfal (Fernando Pessoa)


À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical -
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos,
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!
Horas europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés - oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do Útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de estatura do Momento!
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues de L'Opéra que entram
Pela minh'alma dentro!
Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
Comerciantes; vários; escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubes aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença demasiadamente acentuada das cocotes
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer;
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!
(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)
A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!
Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes -
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!
Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!

Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!
Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente.
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!
Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes -
Na minha mente turbulenta e encandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.
Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais!
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta).
Eh-lá o interesse por tudo na vida,
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando as costas
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.
Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!
Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de duas cores!
(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)
Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas.
E ser levado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!
Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de...,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!
Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! -
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosamente gente humana que vive como os cães
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!
(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...)
Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!
Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!
Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.
Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!
Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!
Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!